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Perfil de Ana

O sobrenome que em português nunca passa indiferente veio do pai, Sérgio José Calzavara, de família em grande parte oriunda do Vêneto, que se estabelecera em Valinhos, interior de São Paulo, no último quarto do século XIX. A família da mãe, Lucinda Capovilla, de mesma origem italiana, chegara à região por volta de 1890. Pai e mãe casaram-se em 1968 — Ana Lúcia Calzavara nasceu três anos depois, em 8 de julho de 1971, em Campinas, a caçula de dois irmãos. Entre as lembranças da casa de Valinhos, onde passou a infância, uma é até hoje muito clara. Era uma imagem que “ficava na parede bem à frente do piano e, enquanto tocava, eu costumava olhá-la. Era particularmente útil no estudo das escalas ou nos trechos mais difíceis de algumas partituras, quando voltar os olhos para ela era um consolo e um incentivo.” 

       

O que a fascinava não era exatamente o tema (dois barcos descarregando num porto), mas as várias nuances de verde que havia nas águas e as pinceladas grossas que espalhavam a tinta. 

A reprodução perdeu-se nas mudanças de casa da família. Muito tempo depois, ao folhear um livro, Ana deparou-se novamente com ela. Descobriu que o quadro se chamava Cais com homens, era um óleo sobre tela e o autor, Vincent van Gogh.

       

Esta é, provavelmente, sua primeira e mais duradoura memória relacionada à arte. Fora isso, havia uma anedota que corre na família de que seu avô paterno tinha o hábito de contar histórias desenhando a carvão na porta de casa. Descrevia uma cena e, para dar ênfase à narrativa, desenhava-a na porta de madeira, apagando as imagens à medida que o enredo pedia.

 

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Em 1990, após hesitar entre Arquitetura e Artes Plásticas, Ana optou pelo curso de Artes Plásticas da Unicamp. Ali o diálogo com o gravador e professor Marco Buti levou-a a se dedicar mais intensamente ao desenho e à gravura do que às outras disciplinas. Após a conclusão do curso na Unicamp, em 1994, a artista inicia o que ela mesma denomina seu “período de formação em ateliês”, quando, ainda residindo em Campinas, frequenta na cidade de São Paulo o Ateliê Experimental de Gravura Francesc Domingo, no MAC-USP, coordenado pelo gravador Evandro Carlos Jardim; o Ateliê de Gravura do Museu Lasar Segall, com orientação de Cláudio Mubarac; e as aulas de pintura ministradas por Paulo Pasta.

Nesse ponto, vale citar a artista:

“Nos anos que seguiram à graduação, eram frequentes as minhas viagens entre as cidades de São Paulo e Campinas. Aí, sentava-me à janela do ônibus para observar a paisagem externa e desenhá-la. Preenchi alguns cadernos de desenho nesses trajetos.           

   

A paisagem em si era um tanto monótona: uma estrada margeada por vales e montanhas. Mas atraía-me a paisagem em movimento. Justamente por não ter um ponto fixo, aquela estrada era um continuum de imagens, espécie de cinema acelerado: uma transformação ininterrupta de ângulos, seus pontos em perspectivas cambiantes, os inúmeros jogos de luzes e rearranjos dependendo das nuvens e da posição das montanhas em relação à estrada, os sinais de trânsito, que funcionavam para mim como pontuações gráficas — linhas que interferiam e se sobrepunham aos planos, dotando-os de certo ‘colorido’ e, muitas vezes, organizando-os. 

     

A velocidade com que as coisas se apresentavam e sumiam diante de meus olhos exigia um desenho que operasse num limite entre a observação e a memória. Ora o desenho era uma síntese do que eu via, uma espécie de instantâneo reduzido da paisagem; ora uma síntese também, mas que não era resultado de uma redução, e sim de uma somatória de coisas e sensações que haviam sido apreendidas num fluxo contínuo e que acabavam por se reorganizar numa nova imagem.” 

     

Desenho que opera “num limite entre a observação e a memória”; desenho que é “síntese”, porém não redução e sim “somatória de coisas e sensações”; desenho (ou gravura ou pintura ou monotipia ou...) apreendido num fluxo que anseia “por se reorganizar numa nova imagem”.

     

Essas poucas linhas concentram um projeto de busca de afirmação plástica para toda uma vida e, ao mesmo tempo, resumem, a meu ver, as linhas de força que orientam o trabalho de Ana desde então. Como o ar que não para quieto, esse trabalho mostra suas mais belas qualidades precisamente quando está em movimento, quando se desloca de um meio para outro, não esquecendo, mas, ao contrário, precisamente levando em conta a densidade própria de cada meio. 

 

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Em 1995, a artista se muda para São Paulo. A seguir, com uma bolsa de aperfeiçoamento em artes (Apartes/CAPES), passa a temporada de 1996-98 em Londres, cursando a Byam Shaw School of Art:

“Esse período em Londres foi muito rico em termos de convivência com trabalhos artísticos — especialmente pinturas — que até então só havia visto através de reproduções. A frequência regular a museus foi importante como educação do olhar. Algumas salas eram constantemente revistas: Rembrandt, Cézanne, Seurat, Van Gogh. Entre os ingleses, Turner, sobretudo suas aquarelas e pinturas finais, quase monocromáticas e muito atmosféricas. Algumas exposições marcaram-me de maneira singular, como as de Bonnard, Morandi, Mondrian, Giacometti e Hiroshige.”

     

Mais do que isso, a experiência londrina parece trazer à tona um novo desafio: como empreender uma busca como a enunciada acima, que concede primazia à experiência sensível e, ao mesmo tempo, enfrentar os dilemas da pintura contemporânea que parece prezar no artista, acima de outras qualidades, a sagacidade do discurso, o recurso à citação e à imagem de segunda geração. 

       

Ainda em Londres, o impasse suscita uma resposta:

“Foi a partir dessa época que comecei a fotografar mais regularmente. Uma das fotos que orientou o curso de minhas pesquisas foi a de uma janela cujo vidro era recoberto de pintura e, portanto, se tornara opaco, impedindo que se olhasse através dele. Era uma metáfora material da pintura — a janela, olhar que atravessa as paredes; a pintura, superfície opaca que revela algo além de si mesma.”

 

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Em uma passagem de Em busca do tempo perdido, o narrador de Proust nos diz que, quando sua avó queria lhe dar de presente a vista de um belo monumento ou paisagem, em vez de escolher uma fotografia (que então parecia à sua avó um meio unicamente utilitário), ela procurava introduzir entre seu olhar e o objeto retratado “várias ‘espessuras’ de arte” — e acabava optando por um desenho, uma gravura, uma pintura. 

Ela sabia que não nos aproximamos de um objeto de maneira neutra, mas sim atravessando diferentes espessuras, diferentes densidades.

       

Essa afirmação poderia valer, por um lado, como uma teoria da tradução entre duas línguas; por outro, como uma teoria da tradução implícita em cada operação poética. Afinal, que é o processo de perseguir a configuração de uma imagem, seja ela musical, plástica, tátil ou verbal, se não persegui-la através das espessuras próprias daquele meio?

         

De maneira análoga, noutra passagem, o narrador conta que, quando estão prestes a realizar a sonhada viagem de Paris a Balbec, sua avó propõe que façam a viagem não de maneira direta, de trem, mas empregando mais de um meio de transporte — ou seja, colocando entre Paris e Balbec tantas “espessuras” quanto possível. “O prazer específico das viagens”, explicita o narrador, consiste “em tornar a diferença entre o ponto de partida e o ponto de chegada não tão insensível, mas tão profunda quanto possível, em senti-la em sua totalidade”. 

E aqui prossigo eu: pois é nessa diferença, nesse intervalo, nesse deslocar-se entre lugares por diferentes meios de transporte, que o acontecimento poético — ou, nomeando-o de outro modo, a transformação — tende a se manifestar mais plenamente.

       

Explorando as diferentes densidades do desenho, da pintura, da gravura e da fotografia, o trabalho de Ana vem realizando, na intersecção de várias perguntas, uma busca que tem talvez como meta aquilo que Virginia Woolf chamou de “a lenta mácula do mundo”.

     

Nesta imagem a escritora inglesa condensa, entre outras coisas, o sentimento humano de que estar vivo é impregnar-se de mundo; nomeia um dos modos dessa impregnação (a mácula, a mancha, que não deixa de ser o lugar por excelência da cor); e o tempo, esse veículo de mão dupla que nos transporta e é, pela obra de arte, transportado.

 

Alberto Martins

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