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Entrevista a Fabrício Lopez
Fevereiro de 2014

1. Na sua vida cotidiana, qual o lugar da pintura ?

 

Se pensarmos em pintura de um modo mais amplo, diria que ela está incorporada em meu dia-a-dia: o modo como me relaciono com as coisas ao meu redor, desde o que observo e como observo, acho que é bem próximo a um pensamento que remete à pintura. Lembro também de mim criança, uns quatro, cinco anos, e que esse desejo de pintar já era presente. Cheguei a ganhar tela, tintas, cavalete, e tenho na memória a lembrança de uma dessas pinturas que fiz, porque achei muito difícil pintar aquilo que queria – uma paisagem, um tanto quanto pitoresca, que tinha uma ponte no meio dela, algo que se revelou um problema complexo: resolver aquelas passagens de planos, eu não sabia como!

Enfim, acho que meu olhar, talvez mais que isso, meu corpo, é sensível a esse tipo de situação – me refiro às relações de cor, luz, enquadramento, veladuras, planos. Procuro instintivamente essas relações quando olho as coisas, sejam elas um muro, uma janela, uma fachada, uma pessoa, a natureza, ou mesmo uma imagem.

Agora, pensando de modo mais específico, a pintura em si, ela nunca foi, para mim, algo muito simples de equacionar: a produção da pintura, num certo sentido, é mais exigente do que, por exemplo, a do desenho – ela necessita em geral, de um espaço físico também mais específico – uma determinada condição de luz, ventilação. O tempo da pintura também é, a meu ver, mais lento, sobretudo se você trabalha com uma tinta a óleo. Além disso, acho que o tempo da pintura, o tempo que ela necessita para acontecer, não me parece que vai muito de encontro com o modo de vida atual – é um trabalho que requer uma rotina no sentido de ser constante, envolve uma certa solidão, persistência. É lento, sem garantias. Talvez seja parecido com o trabalho de um escritor.

Ao mesmo tempo, são essas características que lhe conferem sentido e interesse. Acho bonito essa não-adesão ao tempo de produção industrial – trabalhar com pintura, é, necessariamente, refletir e se posicionar diante desse aspecto.

 

2. Qual aspecto do fazer lhe é o mais atraente?

 

Não sei se há um aspecto mais atraente. Acho que o fazer não se resume ao momento em que se está pintando – há o ‘ruminar’ constante das coisas, esse olhar contínuo sobre o mundo e as relações, idéias e pensamentos que se constituem a partir daí; e há o momento do próprio fazer, do ateliê, onde a pintura acontece, no embate entre as idéias, desejos e a matéria. Ambos são importantes, mas tenho mais respeito pelo segundo, porque é ali, e só ali, que a coisa acontece. Enfim, o processo todo tem seus atrativos, mas é evidente que nele tampouco cabe só prazer – é uma atividade que, ao menos para mim, traz também angústia, ansiedade e dúvidas.

 

 

3. O ensino de práticas artísticas e a transmissão daquilo que lhe foi assimilado por meio do trabalho continuado seja na pintura, fotografia ou gravura, é encarado por você como parte constituinte do seu processo de criação ou são momentos desvinculados?

 

É encarado como parte constituinte, e acredito que por isso mesmo, eu optei por ele. Já fiz outros trabalhos paralelos à atividade que mantenho no ateliê, mas me parece que o ‘ensino’ é o que há de mais próximo dela, porque é uma extensão, até certo ponto, do pensamento da atividade da produção artística. Quando acompanhamos outra pessoa trabalhando (que é basicamente no que consiste a condição do ensino da arte), estamos refletindo sobre problemas constitutivos à linguagem artística, seja da pintura, da gravura, da fotografia, do desenho, e assim por diante.

Além disso, não é incomum o fato de que, ao nos debruçarmos sobre a produção de outrém, venhamos a tecer reflexões que podem contribuir na compreensão de determinados aspectos do nosso próprio trabalho. No fundo, olhar para fora é olhar para dentro também.

 

4. Você aponta para fotografia como uma técnica que lhe permite a transferência de conteúdos e referências para outros campos de atuação com mais facilidade e fluidez. Gostaria de saber mais a respeito (exatamente o porquê).

 

Essa é uma questão importante, mas que não tenho totalmente clara para mim. O processo de trabalho é também bastante intuitivo – a fotografia foi ganhando interesse na minha produção de uns 15 anos para cá. Foi acontecendo de modo natural dela servir como um jeito de pensar as coisas, da mesma maneira que o desenho o foi durante anos. Acho que ela me ajudava a ver, a tornar visível em imagem, um pensamento visual.

Talvez pelo registro das cores que ela traz consigo (em meu caso, que fotografo a cores) – ela opera na lógica dos planos, não das linhas. Essa relação entre as superfícies, acho que é um dado, sem dúvida. E também pelo seu caráter que para mim é sempre mágico – você aperta um botão e o mundo é subtraído por aquele buraco – vira plano, imagem. Já é quase uma pintura, mas, ao mesmo tempo, é também algo diferente, tem questões relacionadas à própria linguagem fotográfica.

Enfim, acredito que, em meu caso, a fotografia me auxilia muito a tornar consciente o espaço. E, ao mesmo tempo, ela, ao me trazer subsídios para pensá-lo, serve como fonte de desdobramentos para outras linguagens. Mas há que se tomar o cuidado de sempre respeitar também o que cada linguagem tem de específico, senão pode-se cair na armadilha de virar uma simples transferência de imagens, o que acarretaria no inevitável esvaziamento da potência de um e outro trabalho.

 

5. Existe um detalhamento e uma minúcia na construção das imagens e às vezes, nota-se um movimento contrário, algo como uma abreviação descritiva voltada para a forma em si, como se você negasse uma precisão adquirida. Existe uma dúvida ou uma aposta na convivência entre diversos modos de pensar e construir as imagens?

 

Os dois – acho que posso dizer que é mais uma pergunta que valia a pena ser colocada porque precisava ser colocada à prova. Mas você observou bem, isso é uma reflexão que me acompanha já há alguns anos. Se eu for pensar a fundo, talvez ela já estivesse presente, ainda que de modo inconsciente, desde a época da graduação. E talvez  ainda ela se torne mais contundente na pintura, ao menos de forma mais consciente.

Mas é curioso observar que esse processo, temporalmente, se dê de maneira inversa: as imagens mais recentes aproximam-se mais ao que você chama de detalhamento. Conforme as pinturas retroagem no tempo, elas apresentam uma síntese muito maior da forma. Isso decorre de uma reflexão e uma vontade de ser menos metafísica, me achegar mais às coisas do mundo. Porém, nesse processo, a fotografia desempenhou o papel de mediadora, não parti da realidade em si. Querendo ou não, isso traz conseqüências ao caráter da imagem, acho que ela se torna menos palpável, menos coisa e mais imagem, porque eu também não procurava por uma representação ilusória, pura e simplesmente, do mundo. Por isso afirmo que era mais uma pergunta que queria ser posta à prova, digamos. E não acredito que isso tenha se resolvido. Ainda tenho pensado sobre essas questões e estou também curiosa para saber como isso se dará nos próximos trabalhos.

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