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À Deriva

“onde foi maçã

resta uma fome”

João Cabral de Melo Neto

 

As imagens de Ana Calzavara – sobretudo algumas pinturas e gravuras – produzem efeito estranho em quem as vê: vontade de falar. O silêncio é tamanho, a melancolia tão funda que a gente tem logo vontade de preencher os espaços, habitar as casas, escancarar as portas. São imagens de solidão, abandono, mas, também, de surpreendente delicadeza. A descrição contraditória expõe a qualidade que sustenta a obra de Calzavara. Estamos diante de uma obra que escolhe o fio da navalha, para tanto, precisa equilibrar-se entre suavidade e violência.

   

Artista e acadêmica, Ana estuda e reflete sistematicamente sobre seu fazer, não só no exercício artístico, como também no ensaístico. A conjunção não é “privilégio” só dessa artista, mas vem se impondo como lugar-comum nos últimos tempos no Brasil. A figura do artista que é também fruto da vida universitária vêm se tornando costumeira entre nós.  Sinal e sintoma de uma renitente divisão de classes que permite a poucos a dedicação e, também, a fruição das artes. Em sendo assim, o mundo da pesquisa acaba por se tornar território possível de criação artística, seja pelo fomento de bolsas de estudos (miseráveis, diga-se de passagem), seja pela existência obrigatória de um interlocutor, forma quase única de nos retirar da solidão que vem dando o contorno da vida intelectual ou artística de quem não é arroz de festa. Nas artes plásticas os sinais disso são ainda mais graves e evidentes: o circuito de exposição e apreciação é, permanentemente, para poucos e eleitos. No entanto, isso não é exclusividade das artes plásticas. O mesmo também vem se dando na literatura, sobretudo com a poesia. As consequências, as especificidades de cada atividade ou dos grupos de artistas e escritores envolvidos nisso não vêm, nesse momento, ao caso. Interessante é notar que esse fenômeno difere em muito do embricamento entre arte e intelecção do qual o país viu nascer sua melhor produção intelectual, nos hoje já distantes anos 30 e 40, do século passado.

   

Diferentemente desta que vivemos hoje, aquela conjunção pôs dedo nas nossas lacunas de país jovem e subdesenvolvido, e por isso foi capaz de criar entre nós formas específicas de pensamento, por meio de diálogos e de espaços de debates. Não é exatamente o que vem acontecendo atualmente. Com resultados bastante distintos e diversos, temos assistido de modo geral a muitos artistas que se veem impelidos à carreira acadêmica por estrangulamento dos espaços de criação. Com isso, a força criativa se vê muitas vezes tendo de se submeter a análise de si mesma – como se as obras já viessem acompanhadas de sua crítica. Tudo pronto, a obra fala de si para si, tornando desnecessária a existência do observador ou do leitor. Mas, ainda assim, ela continua a existir?

   

A obra de Ana Calzavara, por sua condição material de existência, está inserida nesse movimento novo que une o mundo acadêmico ao artístico. E, embora seja essa a sua condição de trabalho, sua criação é capaz de escapar do solilóquio autorreferente, esterilizador. Com força para colocar a cabeça para fora, Ana fez de sua dissertação e de seu doutorado, espaços possíveis de criação plástica e literária. O diálogo de sua obra se faz em direção à literatura e a composição dos trabalhos, desse modo, se faz da costura entre textos e imagens. Textos que vão falando do processo de criação, da depuração do olhar e do interesse dos seus olhos. O olho de Ana está sempre à busca de movimento, ela toda está sempre em movimento e, talvez por isso, a escolha cada vez mais presente das gravuras em detrimento das pinturas: seu corpo precisa mover-se a fim de criar. 

Seu trabalho de doutoramento intitula-se “Entremeios” (2012). Antes disso, seu mestrado recebera o nome de “Frestas”. É de sua consciência, portanto, a produção de imagens que são não-lugares:

 

“Entremeios” refere-se a um modo de olhar; indica um lugar, um “estar”, um percurso: “estado intermediário entre dois extremos; espaço, coisa ou tempo entre limites”. Portanto, entremear implica “por de permeio, misturar, intervalar”.

 

Suas gravuras e pinturas guardam a melancolia de alguma coisa que terminou ou que sequer começou. Cada casa, porta, janela com cortina, janela fechada, paisagem, estrada são desertos recém-constituídos que nos colocam diante de vazios. Melhor que vazios, seria dizer lugares “esvaziados”. Os espaços criados por Ana Calzavara são a concretização da iminência de uma desistência, como se ela capturasse o instante em que o movimento acabou de se dar. É assim com as gravuras que deixam a marca disso não apenas nos objetos, nos ângulos inesperados que fragmentam a cena e os objetos (veja para isso o lindo “Norte” ou “Ruína”), mas no modo de produção, na força e no movimento que impregnaram e produziram a matriz, mas que se apagam diante da leveza do resultado impresso em papel. É assim também com as fotografias, feitas de dentro de carros, recortando morros, túneis, a Marginal Pinheiros em São Paulo. Se as primeiras definições de fotografia falavam no instante suspenso, congelado, Ana traz o tempo e o movimento para dentro das imagens, feitas de passagem. Há ainda os pequenos desenhos (quase só esboços) feitos nos anos 90, de dentro do ônibus da estrada entre São Paulo e Campinas, que deixam só um rastro de humanidade em traços mínimos, fazendo lembrar as ‘monotipias’ de Mira Schendel.

   

As obras de Ana Calzavara tentam capturar o que já se perdeu, são esgares de tempo e de espaço, mas principalmente de uma existência subjetiva possível. Embora seus quadros sejam quase sempre paisagens sem figuras, a presença subjetiva é força que impulsiona a existência do quadro. Falo não apenas da mão da artista que sustenta, com seu mundo interno, aquelas composições, mas de presenças internas às imagens. Muito diferente das gravuras de Osvaldo Goeldi, por exemplo, em que as figuras aparecem, povoam a cidade, dão -nos a proporção do espaço, tornando-o familiar, reconhecível, mesmo que melancólicas, exasperadas ou frágeis.

   

Em Calzavara, as pessoas e, mais que isso, a subjetividade, é a presença de uma ausência, parafraseado Lacan. Não as vemos, mas elas estão lá e é isso que constitui as imagens como meios desertificados. Mesmo na bela xilogravura ‘Exílio’, na qual vemos um homem em primeiro plano. Sua presença maciça deveria apontar para o oposto do que acabei de afirmar e, no entanto, ao nos dar as costas, impedindo-nos de vê-lo e de ver o mar à sua frente, deixa-nos exilados, excluídos do quadro. Imediatamente, o mar perde sua amplidão porque é menor que o oco desse homem árido. O exílio de Ana, então, deixa de ser uma referência concreta à expatriação ou a uma experiência individual e passa a compor com a longa tradição de interpretação do Brasil e do brasileiro, que transformou a experiência do desterro patriótico em degredo e solidão subjetivos, identitários. Desde a “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias, as heroínas sem lugar dos romances de Alencar (tais como Iracema, Aurélia, Berta), ou os retirantes de Graciliano Ramos, ou ainda os homens que acompanham o rio Capibaribe nos poemas de João Cabral de Melo Neto passando por nossas melhores interpretações histórica e sociológica, estamos diante de figuras sem lugar, sem sentimento de pertença. As fotografias, pinturas e xilos de Ana dão forma a essa mesma experiência. Espaço simbólico, registro da impossibilidade de existir solidamente, de habitar as casas, de ocupar os espaços. Quanto mais densa a tinta ou quanto mais profundo o entalhe na madeira, menor a densidade do homem. O homem sobrepaira o mundo de Calzavara, não como dado sutilíssimo, metafísico, mas como força impedida de descer, de pisar, de chegar a algum lugar. O ‘Caminho do mar’ da artista é mais (ou menos?) que o trilho, é o ferro, o chão. Tem tudo menos a imagem pronta, óbvia, esperada da liberdade ou da vastidão. Como João Cabral, Ana cultiva o deserto como um pomar às avessas.

   

A estrada está lá, o carro, o mar, o barco, o trilho do trem, o trem, a casa com suas portas e janelas, mas como fazer dessa materialidade acesso à existência? O exílio não é autoimposição, é sintoma. Sintoma de um país subdesenvolvido dividido entre a arte e a sobrevivência quotidiana, sintoma de uma consciência partida ao meio.

 

 

Thaís Mitiko Toshimitsu

(texto elaborado a partir da exposição individual "O vento sopra onde quer", Gravura Brasileira, SP, 2012)

‘Norte’, Xilogravura impressa a cores sobre papel Wenzhou, P.A., 2009

‘Ruína’, xilogravura impressa a cores

‘Exílio’, Xilogravura impressa sobre papel Wenzhou, 2009

‘Encrocio - Caminho do Mar’

Xilogravura impressa sobre papel Wenzhou, 1/2, 2009

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