O erro geralmente surge de um engano ou de um deslize. É a ocorrência de um ato não calculado, de uma incorreção que foge ao projeto original. Nas artes gráficas os pequenos erros são observados na impressão, que pode estar fora de registro, com uma cor mais rala ou algum problema na matriz que deixa aparente a falta de acabamento. Mais do que assumir pequenos erros como parte do processo, Ana Calzavara faz deles um recurso expressivo. Isso poderia ser uma contradição na medida em que, se o objetivo é chegar ao erro, ele deixaria de ser uma falha e se tornaria um fim, a realização plena de um projeto. Entretanto, a artista explora alguns erros, em sua tensão e potência que lhes são inerentes, como elementos de sua linguagem.
Esse seu apreço pelas pequenas imperfeições revela, na verdade, uma operação para dar voz ao acaso, ao esgarçar das regras, aquilo que foge ao programado. Assim, os pequenos erros sem importância se tornam fundamentais em sua poética, justamente porque são conquistas técnicas, em parte previstas, em parte imprevistos incorporados, que se convertem em uma intenção deliberada em reconhecer a qualidade nos pequenos defeitos. Se, ao menos desde os modernos, não há mais um modelo correto ou paradigma a ser seguido na arte, o trabalho de Ana Calzavara investiga o “erro” como estratégia do trabalho.
A paisagem é recorrente nas impressões de gravuras ou fotografias da artista. Apesar de ser um gênero tradicionalmente ligado à representação de um espaço determinado, chama atenção em sua obra o modo como o tempo se torna aos poucos o protagonista. Enquanto isso, a paisagem às vezes não se revela inteiramente. É no destaque dado à passagem de um quadro a outro que surge o vínculo com o cinema. Entretanto, o cinema provoca ilusão de movimento a partir de uma sequencia de vinte e quatro quadros por segundo. Já no trabalho Pequenos erros sem importância há outra noção de tempo.
Seis imagens tomadas de seis ângulos diferentes, que não estão colocadas em sequência, são distribuídas lado a lado, separadamente. É como se entre cada imagem surgissem lapsos temporais e pequenos hiatos. As impressões se organizam quase como num caleidoscópio, a partir de uma estrutura geométrica espelhada. Galhos de árvore se bifurcam, se refletem e, em alguns momentos, dão a sensação de continuidade entre as imagens. Logo em seguida essa ilusão se desfaz e o todo caótico aparece, assim como micro desníveis e interrupções no alinhamento das fotografias. Outro trabalho (O pulso de todos os tempos) reúne os mesmos seis quadros sobrepostos. Com isso as camadas se entrelaçam, se conectam, se distanciam e criam luzes e texturas diversas. É como se a sobreposição trouxesse um tempo de condensação, em vez da dispersão das seis imagens anteriores. Tudo passa a acontecer no mesmo instante, no mesmo lugar, numa soma densa e turva de imagens. Não há espaçamento dos quadros num sentido de sucessão contínua, como no cinema, e sim o procedimento de reter tudo num único espaço, o papel. Com isso, a artista inventa dimensões que as imagens não teriam isoladamente.
Em Jogo da amarelinha, Ana Calzavara trabalha com uma sequência de imagens que têm como ponto de partida apenas uma fotografia que se repete e se transforma. Trata-se da sucessão do mesmo evento, de um instante em que um fragmento de uma árvore surge contra um céu monocromático. A ênfase está na relação figura-fundo, negativo-positivo, como se um se transformasse em outro. Em alguns momentos há uma pausa que traz o fundo para frente, seja o branco ou o ocre das paredes, seja o preto ou o cinza dos papéis impressos. Os vazios e planos monocromáticos intercalados na sequência de gravuras funcionam como elementos de respiro do conjunto e, ao mesmo tempo, integram o trabalho ao espaço da sala expositiva. Duas impressões com pequenos desajustes, um tanto fora de registro, ainda contribuem para conferir ao todo um jogo de cálculo inexato, como numa dialética sem síntese. A primeira é a sobreposição das imagens positiva e negativa em que os contrários cromáticos não se anulam e se mantém pulsantes. A outra apresenta uma impressão xilográfica sobre fotografia – a mancha resultante ao mesmo tempo que embaralha, confere movimento e tridimensionalidade à imagem.
O trabalho de Ana Calzavara lida com continuidades e rupturas entre imagens. A artista opera ora por justaposição, ora fundindo matrizes. Numa sequência de quatro impressões de uma paisagem colorida é como se a mesma imagem se transformasse em outra apenas pelo lugar em que está posicionada no conjunto. O efeito também lembra o que no cinema se chama de travelling, em que há um deslocamento da câmera no espaço. Entretanto, o resultado é semelhante ao de uma panorâmica, em que a câmera gira em seu próprio eixo horizontal. Pequenas interferências realizadas pela artista nas imagens nos faz descobrir com surpresa que estamos nos movimentando ao redor de uma mesma cena e que retornamos ao ponto de partida.
O voo de um soturno urubu ao redor de uma trave de gol em uma praia deserta qualquer é o motivo de uma série de oito paisagens cinematográficas feitas em xilogravura. É como se cada impressão trouxesse um ângulo distinto de uma mesma cena. Alguns elementos são permutáveis e aparecem em diferentes impressões, fazendo de cada imagem algo único. Apesar de a cena não se passar durante a noite, não se trata de uma visão solar e radiante, mas de uma luz de pôr do sol, de ocaso. O tom ocre, ao mesmo tempo iluminado e obscuro, prevalece no conjunto. É como se tivéssemos a decupagem de um acontecimento em diferentes planos e tomadas. Temos a percepção distanciada, de sobrevoo, algo distante do ângulo de quem de fato habita a terra. Os ângulos são recuados, como se pudessem ser oniscientes e captar toda a solidão e melancolia do mundo.
A mesma atmosfera de vazio e silêncio reaparece em Conte d’amour, que também traz fragmentos, mas nesse caso as partes se encaixam e formam um único painel. É uma gravura que tem como imagem inicial um pequeno desenho, mas que traz algo da linguagem da pintura, com suas cores vibrantes. Paisagem e figura humana convivem e ressaltam um estado de espírito contemplativo.
Já o grande autorretrato da artista com olhos fechados indica um movimento de volta sobre si, como a busca de uma paisagem interior. A autorreflexão como retorno ao mundo da subjetividade é, ao mesmo tempo, o encontro consigo, com os outros e com o espaço ao redor, mesmo que eles não coincidam completamente. Um desajuste semelhante de espaço pode ser reencontrado na soma de duas matrizes de xilografia e uma fotografia impressa em metacrilato. É exatamente a inexatidão no registro, uma falta de coincidência plena das imagens, que configura um “pequeno erro”.
Os meios reprodutíveis, sejam manuais ou mecânicos, lidam sempre com a reiteração. Cada cópia deve ser idêntica à outra. Mas a artista, também em resposta ao tecnicismo que domina o mundo contemporâneo, prefere operar de modo mais humano, numa repetição que não se completa plenamente, uma vez que vai propositalmente se transformando pouco a pouco. Como num efeito borboleta, pequenos erros sem importância, às vezes imperceptíveis a olho nu, podem gerar um tsunami. Mas a repetição do gesto faz com que, no interior dele, surjam diferenças, ausências de procedimentos padrão ou mínimos desajustes.
Em vez do absoluto, o que interessa é a fragilidade e o vulnerável. A experimentação no trabalho da artista se alimenta do desconhecido, daquilo que será colocado à prova e, portanto, do que ainda não é reconhecido como um valor instituído. Ana Calzavara foge da completude máxima que tende a ser estéril, estagnada, que não se abre para o porvir e para o inacabamento do mundo. São os pequenos erros sem importância que fazem o seu trabalho fecundo e permitem que ele se desenvolva rumo ao indeterminado.
Cauê Alves