Quiçaça
Névoa, nevoeiro, horizontes turvos, brechas, frestas, dobras, desaceleração, cognição, regime de visão e por aí vai. Todas estas palavras ou expressões vêm tornando-se, sabemos, cada vez mais comuns em nosso vocabulário cotidiano, penetrando o discurso de um certo imaginário coletivo que busca – com mais ou menos sucesso – interpretar e digerir a complexidade da experiência humana atualmente.
Ao passo em que uma versão hiper da contemporaneidade por nós compartilhada enquanto experiência comum de tempo e espaço se intensifica, a arte contemporânea, frequentemente, lança-se ao desafio de ir na contramão desta avalanche de informações, estímulos e demais acúmulos de “data”, a pairarem feito sólidas nuvens de conteúdos obscenamente distintos e já indiscerníveis por nossos aparatos cognitivos. Intitulada Quiçaça, a presente série de pinturas aqui reunidas (junto de uma xilogravura realizada em tríptico, e uma série de desenhos e frottages), foram concebidas pela artista no ano passado, em um momento em que se encontrava resguardada em um ambiente doméstico, por conta do período de quarentena e isolamento necessários diante da contaminação pelo vírus Sars-Cov-2, o Covid.
Não que tal isolamento e certa solidão fossem estranhas ao processo artístico de Calzavara, artista que, através de meios distintos como a fotografia, o vídeo e a pintura, está sempre a investigar e perscrutar os meandros de um mundo possivelmente mais silencioso, menos histriônico, diante deste em que nos encontramos sufocados, desorientados em busca de chão firme e respostas concretas sobre o porvir. A "quiçaça" do título da mostra designa justamente a maior parte das paisagens-vegetações que vemos em trechos, excertos e zooms involuntários, através das pinceladas de Ana. Uma quiçaça é justamente o tipo de planta que cresce em terrenos baldios, nas frestas de paredes de tijolo e de cimento, em improváveis brechas de uma estrutura arquitetônica qualquer, apontando para sua resistência e desejo incorruptíveis de virem ao mundo, de crescerem em direção à luz do sol e aqui permanecerem.
Se o mundo de hoje nos conduz à uma experiência em que nossos aparatos cognitivos encontram-se em plena disfunção ou derradeiramente caminhando para uma espécie de colapso total – somos bombardeados a todo momento em diferentes direções, através de imagens impressas, digitais, pixeladas, em uma irrefreável avalanche das próprias – não é raro que nossos olhos deixem escapar um tanto daquilo que, dentro desta desequilibrada e esquizofrênica equação, é capaz de fisgar nossas atenções e sensibilidades. Dito, quem sabe, de outra forma, pelas palavras do filósofo coreano Byung-Chul Han, em seu texto "Não coisas":
Informações falseiam eventos. Elas vivem do estímulo da surpresa. Mas o estímulo não dura muito tempo. Surge rapidamente uma necessidade de novos estímulos. Acostumamo-nos a perceber a realidade em termos de estímulos, em termos de surpresas. Como caçadores de informações, nos tornamos cegos a coisas silenciosas, discretas, até mesmo coisas ordinárias, trivialidades ou convencionalidades que carecem de estímulo, mas que percebemos em nossa vida diária.
Elas carecem de estímulo, mas nos ancoram no ser.
(Han, Byung-Chul; "Não coisas - Reviravoltas do mundo da vida, 2023, Editora Vozes).
Ora, não é preciso ir muito longe para articularmos, teórica e afetivamente, as vegetações pintadas por Calzavara como exemplos precisos daquilo que o filósofo coreano chama de "coisas silenciosas, discretas, até mesmo coisas ordinárias". Tal exercício do olhar, em busca de sua desaceleração e da instauração de um outro regime de atenção e disponibilidade para com o mundo que enxergarmos a nosso redor, não é novidade na produção da artista. Aqui, no entanto, este desejo ganha novos contornos ao passo em que Ana opta por exibir apenas pinturas, as quais suas concepções muitas vezes são originadas da própria fotografia, meio que vem explorando, amplamente, há cerca de 25 anos.
"Como fazer uma imagem que persiste?", perguntou-se a artista, durante o processo de realização das telas aqui reunidas. Concebidas em diferentes escalas e sobre distintos suportes (telas, juta e utensílios de barro), as pinturas de Calzavara nos convocam, clara e indubitavelmente, para sermos – nós também! – experimentos e experienciadores desse possível outro mundo, onde uma caminhada qualquer pode nos levar a verdadeiros e profícuos momentos de contemplação, de reflexão e de assimilação de nossas ideias, anseios, angústias e afins.
Ora nos revelando paisagens próprias da sua infância (nas pinturas em que o típico azulejo vermelho de casas simples, espalhada por toda a cidade e perpetuadas em sua irretocável composição estética-formal); ora através de plantas que nos são apresentadas já com o furor do movimento de (vá saber... um carro? uma bicicleta? velozmente pilotada por nós), ainda que sem nos privar de contemplar tudo aquilo com que um passeio banal pode nos presentear. Beleza ótica, interna, sentimento de nostalgia e até mesmo de certa melancolia. Tudo é capaz de nos atravessar. E assim deixemos.
Uma vez de volta ao mundo da experiência, talvez sejamos capazes de lançar olhares fundamentais e um tanto urgentes para a natureza que nos cerca, por exemplo. Seja da ordem das quiçaças que resistentemente florescem nas mais adversas condições, seja ao refletirmos acerca do futuro da Floresta Amazônica, pauta sabidamente global, reincidentemente a nos cruzar, em todo canto pelo qual circulemos. Talvez pensar em mudar o mundo – seja através de um sonho-delírio como salvar por completo o bioma amazônico, seja pelo desejo vão de extinguir todas as formas corruptíveis capazes de genuinamente derreter nossos cérebros e além – seja um pensamento deveras assustador, digno de paralisar qualquer ser que se lance a tal empreitada impossível, pesada e necessariamente coletiva.
Quiçá, devemos começar pelo diminuto, por tudo aquilo que Ana Calzavara nos convida, aqui, a direcionar nossos olhos de retinas cansadas e embaçadas que (oxalá!) se renovarão após uma boa (e estendida) mirada pinturas adentro, por parte dos visitantes. "A força dos fracos é o seu tempo lento", já nos dizia, em 1993, o escritor e geógrafo baiano Milton Santos, no subtítulo de seu livro "Metrópole".
Utilizemos esta força insuspeitada e estranha, com decididos afinco e furor, um latente desejo de encontrar nunca o mesmo mundo, ao fitá-lo; mas, sim, um outro novo mundo velho, em constante mutação para todos os lados e direções infindas, muitas das quais somos capazes de reter dentro de nós e, junto delas, seguir em uma caminhada mais harmônica, poética e possível rumo ao desconhecido porvir. Com menos névoa, neblina, tempestades ou ondas de calor insuportáveis a nos assolar. Caminhar, apenas, como sempre fizemos e assim seguiremos a fazer.
Victor Gorgulho