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Notas sobre "Perguntar não Amansa o Coração"

“Sou cega de tanto vê-la”.

O Estrangeiro, Caetano Veloso

 

Muito se fala da inundação de imagens que sofremos hoje. A imagem tornou-se o grande veículo de venda de produtos das mais variadas espécies. Já se vão 60 anos desde que Andy Warhol e a Pop Art usavam, criticamente, as próprias marcas e imagens criadas pela dita “cultura de massa” como matéria-prima para suas criações. Com o advento do mundo digital, a circulação de imagens cresceu de maneira exponencial com uma intensidade jamais experimentada. As redes sociais ampliaram ainda mais seu uso, tornando indistintos os limites entre as esferas privada e pública. Nosso entorno avança massiva e ruidosamente povoado por imagens.

 

O escritor argentino Jorge Luis Borges, em seu breve e decisivo ensaio sobre a importância do Livro, afirma que este representa uma significativa possibilidade de felicidade de que nós, humanos, dispomos. Diferentemente do jornal, que seria lido para ser esquecido e no qual o uso da palavra se faz de forma frívola e mecânica, “o livro é lido para eternizar a memória”.

 

Para o artista que se expressa através da imagem em tempos atuais, torna-se extremamente desafiador o propósito de torná-la marcante (e por que não: “eterna”) nas mentes e corações de quem a observa. Como criar uma imagem que não seja despercebida ou frivolamente “descartável”? Como dsitinguí-la em meio à “multidão”? Como impregná-la (ainda) de potência reflexiva e transformadora? Como carregá-la de sentido?

 

A reiteração – o fazer de novo, repetir – é um gesto que está, ele mesmo, ligado à própria indústria e suas linhas de produção de mercadorias. Destinadas a ocupar novos espaços e circularem aceleradamente na sociedade moderna, as mercadorias desmaterializam-se e se tornam impalpáveis enquanto produtos de informação e imagens na sociedade pós-industrial. Transformam-se e multiplicam-se, porém, seguem sendo mercadorias, produzidas em séries e padronizadas, visando escalar mercados de massa.

 

Alguns anos atrás, uma espécie de reiteração começou a se manifestar nas minhas produções artísticas. Pouco a pouco, ela se estabeleceu, tornando-se recorrente em obras distintas. Com o tempo percebi que, em meu caso, a repetição acontecia justamente como desejo de distinção. Naqueles trabalhos, repetir o gesto almejava com que, no interior deles, surgissem diferenças, imperfeições, ausências de procedimentos padrões. Portanto, a reiteração surgia, paradoxamente, como desejo de subvertê-la: procurar aquilo que tornava singular e identitário o indiferente.

 

“Perguntar não amansa o coração” é uma exposição que também traz consigo o conceito de reiteração. Trata-se de um conjunto de obras concebidas e elaboradas em 2022 a partir de uma residência artística na Itália nos meses de março e abril deste mesmo ano. A Fundação Bogliasco, que me acolheu, localiza-se às margens da costa do mar da Ligúria. Foi a partir do jardim local que a primeira imagem da série (“Ramagem: matrix”), presente na exposição, foi feita. Uma pintura a óleo sobre tela apresenta um ramo de oliveira que se estende sobre as águas do mar.

 

A mostra foi toda ela concebida a partir desta imagem – sempre a mesma ramagem, porém apresentada em diferentes técnicas e linguagens artísticas. Ao fazê-lo, convido o espectador a rever a mesma (outra) imagem inúmeras vezes com o intuito de que, nessa insistência reiterada, sua atenção não se disperse e possa, ao contrário, orientarse de forma a focar e se aprofundar na apreensão da imagem representada.

 

Como na observação de Borges, desejo que ela persista na memória de quem a vê. Ao mesmo tempo – ou talvez exatamente por essa razão – gostaria que os trabalhos também fossem capazes de nos indagar sobre o que constitui uma imagem hoje. Perguntar não amansa o coração mas, certamente, como diz o livro mais antigo do mundo, poderá nos tornar mais sábios.

Ana Calzavara

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