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PERGUNTAR NÃO AMANSA O CORAÇÃO

Olhar mais uma vez o tremor do visível – a imagem em aparição e desaparição

 

a rebelião consiste em olhar uma rosa

até pulverizar os olhos

Alejandra Pizarnik

 

“Perguntar não amansa o coração” – frase retirada do livro “Obscena Senhora D” de Hilda Hilst – é o título da exposição de Ana Calzavara. O ponto de inflexão que interroga a artista é justamente a ambiguidade abrigada na frase, visto que, no desfiladeiro da imagem e da linguagem, as perguntas surgem infinitas e selvagens, perfurando qualquer lugar idílico da subjetividade.

 

De perguntas surgidas em uma espécie de experiência espessa, em contraponto à aceleração e volatilidade do olhar contemporâneo, surgem obras derivadas de uma imagem matriz: uma pintura a óleo feita na Itália, na residência artística na Vila dei Pini, em Bogliasco, província de Gênova. Na residência, ocorrida de março a abril deste ano, a artista observa um brilho prateado que embaralha a imagem de uma oliveira na água do mar. O aspecto heteróclito da exposição se desdobra dessa primeira obra, “Ramagem: Matrix”, em linguagens diversas: monotipia, desenho, xilogravura, colagem, impressão digital, óleo sobre tela, pastel sobre papel tingido à mão, serigrafia.

 

No belíssimo ensaio “Sideração”, Marie-José Mondzain localiza o que chama de “uma espécie de imagem epiléptica da própria sociedade” que não sabe mais olhar e contemplar, habitar o espanto e a espessura da imagem. A crítica e pensadora faz um chamado e um desvio, invocando o que há de silencioso e decantado nas imagens, para que possamos recuar frente ao excesso imaginário. Ana Calzavara abriga a mesma tarefa ao fazer ressurgir o mundo no curtocircuito da imagem, na ramagem que farfalha e se desloca diante do mar, do vento e de seu olhar e em gestos agudos e sensíveis. O lugar poético, crítico e estético de onde a imagem erige – metade luz, metade sombra, metade natureza, metade artifício – é expandido e transfigura os sentidos prontos.

 

A ideia que se ramifica a partir da repetição da imagem de uma oliveira, rearticulada e repetida sempre a partir de um novo ponto, instaura a possibilidade de outros olhares e cria formas diversas de salvaguardar o enigma da imagem, como acontece nos filmes de Abbas Kiarostami, cineasta iraniano que captura, em elementos aparentemente simples, os gestos e as formas de olhar mais profundos, comoventes e radicais de nosso tempo. Impossível não se remeter aqui a um fino diálogo que pode se estabelecer de maneira epifânica entre esta exposição e a dimensão de revelação que está presente no cinema de Kiarostami, sobretudo no filme “Através das oliveiras”: também nos gestos de Ana Calzavara, um plano ou ponto de vista prosaico pode se transformar em uma força cosmogônica.

 

“Perguntar não amansa o coração” é a celebração dessa possibilidade de olhar que revela a imagem em estado de balbucio. De uma primeira visão se desdobra a exposição e um assombroso manancial de beleza, que guarda tanto a linguagem secreta do vento, quanto o mistério inexorável de uma cena ou de um gesto da artista. Da primeira ramagem o mundo se revela na singularidade de cada obra. “Ramagem: Bruma”, “Ramagem: Noturno”, “Ramagem: Contraponto” revelam a complexidade de paisagens contidas em uma mesma imagem que se desdobra infinitamente.

 

Nas filigranas do que acontece em diferentes relações, suportes e matérias, a artista ensaia e cria em uma região fronteiriça e borrada entre o visível e o invisível, como em “Ramagem: Pixel” – trabalho em pastel seco sobre papel japonês –, em “Ramagem: Raio” – uma mescla de xilogravuras impressas em diferentes cores – ou em “Ramagem: Flu” – nascida de manipulação e alteração de dados digitais –, obras que mostram a impureza que a interessa.

 

Um processo bastante experimental adiciona uma camada de “pixels falhos” de papeizinhos-arroz, misturando linguagens em “Ramagem: Farfalho”. Já em “Ramagem: Ruído”, a experiência acontece a partir da manipulação analógica da fotografia original. Movimentando a fotografia no scanner, a artista simula a difusão ou dispersão da existência contemporânea. O aspecto difuso da primeira imagem vista na Itália se esparrama pela exposição e parece banhada pela mesma luz prata do mar e da oliveira com camadas, texturas e espessuras diversas que reverberam uma vivência corpórea e sensível, dilacerando um mapa visual pré-determinado ao reconstruir uma cartografia singular em que os gestos podem forjar bordas para o insondável da imagem.

 

Por fim, “Ramagem: Vertigem” – trabalho concebido a partir de um descarte – traz a celebração de todo o processo surgido da figura da oliveira, destacando a dimensão vertiginosa que refunda o mundo em um convite à deriva como maneira de circunscrever as densidades poética e ética que podem se abrir a partir da imagem, à maneira revelada pela poesia de Herberto Helder: “esse calafrio de ter olhado alguma vez o nosso próprio rosto no abismo do mundo”.

 

O que Ana Calzavara nos oferta com a abertura para a dúvida é um modo de decodificar o mundo e abrigar o silencioso – uma maneira de retomar a inquietante estranheza da imagem. Diante de suas imagens é possível aprender a língua dos pássaros e do vento e nos tornar fluentes em uma linguagem menos estridente.

 

Bianca Coutinho Dias

*crédito das fotos: Débora Benaim

Notas sobre “Perguntar não amansa o coração”

 

“Sou cega de tanto vê-la”.

O Estrangeiro, Caetano Veloso

 

Muito se fala da inundação de imagens que sofremos hoje. A imagem tornou-se o grande veículo de venda de produtos das mais variadas espécies. Já se vão 60 anos desde que Andy Warhol e a Pop Art usavam, criticamente, as próprias marcas e imagens criadas pela dita “cultura de massa” como matéria-prima para suas criações. Com o advento do mundo digital, a circulação de imagens cresceu de maneira exponencial com uma intensidade jamais experimentada. As redes sociais ampliaram ainda mais seu uso, tornando indistintos os limites entre as esferas privada e pública. Nosso entorno avança massiva e ruidosamente povoado por imagens.

 

O escritor argentino Jorge Luis Borges, em seu breve e decisivo ensaio sobre a importância do Livro, afirma que este representa uma significativa possibilidade de felicidade de que nós, humanos, dispomos. Diferentemente do jornal, que seria lido para ser esquecido e no qual o uso da palavra se faz de forma frívola e mecânica, “o livro é lido para eternizar a memória”.

 

Para o artista que se expressa através da imagem em tempos atuais, torna-se extremamente desafiador o propósito de torná-la marcante (e por que não: “eterna”) nas mentes e corações de quem a observa. Como criar uma imagem que não seja despercebida ou frivolamente “descartável”? Como dsitinguí-la em meio à “multidão”? Como impregná-la (ainda) de potência reflexiva e transformadora? Como carregá-la de sentido?

 

A reiteração – o fazer de novo, repetir – é um gesto que está, ele mesmo, ligado à própria indústria e suas linhas de produção de mercadorias. Destinadas a ocupar novos espaços e circularem aceleradamente na sociedade moderna, as mercadorias desmaterializam-se e se tornam impalpáveis enquanto produtos de informação e imagens na sociedade pós-industrial. Transformam-se e multiplicam-se, porém, seguem sendo mercadorias, produzidas em séries e padronizadas, visando escalar mercados de massa.

 

Alguns anos atrás, uma espécie de reiteração começou a se manifestar nas minhas produções artísticas. Pouco a pouco, ela se estabeleceu, tornando-se recorrente em obras distintas. Com o tempo percebi que, em meu caso, a repetição acontecia justamente como desejo de distinção. Naqueles trabalhos, repetir o gesto almejava com que, no interior deles, surgissem diferenças, imperfeições, ausências de procedimentos padrões. Portanto, a reiteração surgia, paradoxamente, como desejo de subvertê-la: procurar aquilo que tornava singular e identitário o indiferente.

 

“Perguntar não amansa o coração” é uma exposição que também traz consigo o conceito de reiteração. Trata-se de um conjunto de obras concebidas e elaboradas em 2022 a partir de uma residência artística na Itália nos meses de março e abril deste mesmo ano. A Fundação Bogliasco, que me acolheu, localiza-se às margens da costa do mar da Ligúria. Foi a partir do jardim local que a primeira imagem da série (“Ramagem: matrix”), presente na exposição, foi feita. Uma pintura a óleo sobre tela apresenta um ramo de oliveira que se estende sobre as águas do mar.

 

A mostra foi toda ela concebida a partir desta imagem – sempre a mesma ramagem, porém apresentada em diferentes técnicas e linguagens artísticas. Ao fazê-lo, convido o espectador a rever a mesma (outra) imagem inúmeras vezes com o intuito de que, nessa insistência reiterada, sua atenção não se disperse e possa, ao contrário, orientarse de forma a focar e se aprofundar na apreensão da imagem representada.

 

Como na observação de Borges, desejo que ela persista na memória de quem a vê. Ao mesmo tempo – ou talvez exatamente por essa razão – gostaria que os trabalhos também fossem capazes de nos indagar sobre o que constitui uma imagem hoje. Perguntar não amansa o coração mas, certamente, como diz o livro mais antigo do mundo, poderá nos tornar mais sábios.

Ana Calzavara

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