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Nos últimos dois anos, Ana Calzavara desenvolveu uma série de pinturas figurativas com superfície opaca e contrastes discretos de cor. São pinturas mormente tonais que recriam espaços indefinidos. De maneira geral, a artista pinta lugares. Eles não são exatamente paisagens, nem ambientes domésticos. Embora existam panoramas mais amplos, campos abertos, caminhos, pistas e jardins, sempre vemos as figuras em seus quadros de maneira parcial, incompleta e desfeita. 

         

Mesmo quando Ana Calzavara refaz uma área que não é nem rural e nem urbana na Cidade Tiradentes, o campo é encoberto pelo esqueleto de um outdoor quebrado. A artista reforça a opacidade de sua representação. As suas vistas são obstruídas. Vemos os lugares por detrás das plantas, as paisagens são banhadas por uma luz tão forte que não conseguimos ver muito adiante, os prédios, vistos de perto, como em Escolha(2017) e em outras pinturas sobre madeira, tornam-se superfícies sem solidez ou peso. 

         

Em Jardim (2017), o lugar é visto por detrás de um matagal irregular, desordenado, que não nos deixa chegar àquele campo vazio e desabitado. Quando o nosso olhar passa pela vegetação, encontra um pátio claro, iluminado onde tudo parece se amarelar. Aquele lugar meio abandonado, discreto e desarrumado parece o resto de uma arquitetura que ainda não foi encoberta pelo mato. Um resto do que uma casa, um parque, uma cidade pode ter sido. Parece assim, com um resto de vida doméstica ou urbana que está a se despedir de nós. Como um passado teimoso a perder a sua função. 

         

Nos outros jardins pintados por Ana Calzavara essa perda de sentido dos objetos aparece na aproximação da figura com o fundo que parece igualar o chão e a atmosfera. Tudo é banhado por uma luz tão ofuscante ou uma escuridão tão profunda, que retira pouco a pouco o colorido de cada um dos objetos. O verde e amarelo de algumas folhas, o marrom do chão, dos troncos e dos galhos, bem como o rosa, o azul e o preto de algumas plantas parecem ser perigosamente engolidos pela cor que domina a tela. 

         

As imagens tendem a uma homogeneidade. Os objetos, as cores, qualquer tipo de distinção perde o viço, as telas tendem à monocromia. A cor que parece cobrir tudo é a cor do esquecimento. A artista parece se interessar por esse lusco fusco que iguala os objetos, como se ela registrasse o seu último instante de vida. Talvez por isso a artista recorra à fotografia como instrumento de realização das telas e como assunto de investigação intelectual.

         

De modo geral, Ana Calzavara pinta a partir de fotografias que ela mesma faz. Como outras antes dela, a artista usa a fotografia como forma de apreensão dos seus temas. Uma maneira indireta de registrar um instante que se passou e não se repete. As séries, desenvolvidas entre 2016 e 2017 foram nomeadas com termos do vocabulário fotográfico. Elas chamam Subexpostas, Superexpostase Negativos. O nome diz respeito a relação dessas pinturas com a luz. 

         

Mesmo assim, a imagem não possui aparência fotográfica. A artista, diferentemente de Gerhard Richter e Andy Warhol, por exemplo, não procura consonâncias entre a arte contemporânea e outros modos de produção de imagem. Ela parece investigar a fotografia como registro de um intervalo curto. Esse intervalo em que um objeto, uma vista, um resíduo de outra época ainda consegue mostrar a permanência de algo que está prestes a se dissipar. Como os caminhos marcados por faróis nas pinturas negras da artista, a imagem é a pontuação de que algo aconteceu por ali, mas não acontece mais. A imagem é o registro de um lugar frágil, desabitado, que resiste a se desfazer, mesmo com a morte à espreita. 

 

Tiago Mesquita

Notas sobre Ana Calzavara - Trabalhos sobre a exposição "Mais um Passo e se Desfaz"
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