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Além do Horizonte

Como fazer com que polos opostos se toquem, se cruzem, se sobreponham? De algum modo, as obras reunidas em Além do horizonte, de Ana Calzavara, promovem justamente esse movimento: em cada um dos trabalhos hoje vistos existem situações que costumam estar apartadas. Não por acaso, a expressão lusco-fusco se encontra presente em diferentes textos já escritos sobre a sua produção. O termo sinaliza precisamente o momento em que o dia e a noite se atravessam, não sendo possível localizar um ou outro com exatidão. É nesse espaço e nesse tempo marcados pela intercessão que habitam os trabalhos da artista.

 

O partido pela aproximação de opostos se faz presente aqui de diferentes maneiras. As paisagens de Calzavara têm como origem fotografias de uma região específica do extremo sul do Brasil, a Praia do Cassino, RS, onde convivem tecnologias díspares. De um lado, vê-se a presença de um radar hi-tech chamado Over the Horizon (Além do horizonte), instalado em 2018. De outro, uma versão analógica do aparelho voltado para a vigilância marítima, ou seja, um farol construído em 1909. Mais uma dobra se dá quando compreendemos que o título da exposição tem como uma de suas inspirações a canção homônima de Roberto Carlos, que nos fala sobre um lugar intocável, espécie de terra prometida na qual se daria o prazer em meio à natureza. Esse trânsito entre referências antagônicas ganha corpo também na dimensão formal do conjunto de obras ora apresentadas. Se a pintura forma o eixo central da exposição, as mesmas convivem com impressões digitais e xilogravuras (realizadas em jato de tinta na madeira, mas cavadas pela artista com as próprias mãos).

Na tela Over the Horizon (I) vemos uma paisagem desabitada, espécie de deserto de areia à beira mar. Ao fundo, um horizonte no qual céu e mar se confundem. A única presença ali é uma forma circular ao centro, evocação tateante da antena do radar instalado. Já em Farol (II) a nitidez inexiste, a atmosfera desfocada deixa entrever ao fundo, mínimo, o pai analógico que precedeu a tecnologia avançada. O tom romântico próprio das pinturas de paisagem comparece na tela de grande formato Revoada, em que pássaros dão voos rasantes sobre o mar. Mas como já dito, a artista opera no território dos trânsitos. A revoada que surge serena na linguagem pictórica ganha estridência e perde nitidez nas quatro impressões digitais em que vemos os rastros dos voos se tornando apenas vestígios abstratos. O digital que costuma nos endereçar limpidez, clareza, tem aqui o seu sinal invertido, nos chegando sob a forma de algo que resiste à plena legibilidade.

 

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Até o momento, pontuamos uma espécie de breve cartografia geral da exposição. Nos interessa especular sobre os caminhos que essa trama traçada por Calzavara costura. Antes de tudo, é preciso afirmar o óbvio: não há ingenuidade aqui. É curioso notar como em uma primeira visada estamos diante de uma mostra que reúne trabalhos que se relacionam sobretudo com o tema clássico da paisagem, tendo como eixo a mais antiga das linguagens artísticas, a pintura. E tudo envolvido sob um título que faz referência uma vez mais à paisagem, mas também a uma canção popular. É justamente sob essa primeira camada até certo ponto dócil, familiar, que se dá uma série de articulações que nos levam a um diálogo arguto com questões prementes da época atual.

Ao ter como mote a presença simultânea de um radar hi-tech e de um farol no interior de uma obra pictórica, Calzavara nos fala sobre diferentes temporalidades e diversos modos de ver. Se ambos têm como função vigiar e monitorar o oceano, cada um deles nos remete a um determinado tempo histórico. Sintetizando, podemos afirmar que temos, de um lado, a era analógica e, de outro, a era digital. Sabemos bem como a aceleração da técnica no campo da estimulação sensorial se desdobra na fragmentação da percepção. É flagrante como vivemos em um estado permanente de atenção distraída. Diante da proliferação de estímulos, vemos muito e não vemos nada. Segundo o filósofo Christoph Türcke, nos encontramos em meio a um paradoxo. Vivemos entre tecnologias extremamente avançadas ao mesmo tempo que os nossos aparelhos perceptivos se encontram a cada dia mais atrofiados[1]. No lugar de dilatar a sensibilidade, a forma com que essas inovações vêm sendo introduzidas no nosso cotidiano parece, antes, causar uma anestesia dos sentidos, forjando uma espécie de constante dispersão narcotizante.

Ora, esse é um dos alvos da trama de Calzavara. Se a pintura nos demanda uma paciência do olhar, um tempo próprio à contemplação que nos é sequestrado diariamente, trata-se então de introduzir em seu âmago as pistas do impasse em que o estado da percepção se encontra na atualidade. Como não estamos diante de uma artista que crê no recurso fácil de demonizar o mundo das imagens, testemunhamos a relação dos trabalhos pictóricos e das gravuras com as impressões digitais, como se fosse dito que é nossa tarefa saber trafegar por essa atmosfera turbulenta.

Podemos ainda especular sobre as noções de controle e espera que essas obras endereçam. Em meio à praia deserta, que seria potencialmente um lugar de resguardo e descanso (como idealiza a canção popular), habita um radar que tudo controla, como se não houvesse mais nenhuma zona de escape de algum grau de vigilância. E se o vazio e o horizonte que preenchem a maior parte desses trabalhos remetem simultaneamente aos estados de espera e possiblidade, aqui também há um contraponto com uma época em que ambos se encontram interditados. O mundo 24/7 desconhece qualquer sentido de espera, subordinado a uma aceleração tão inquieta quanto vazia de sentido. Ao mesmo tempo, os horizontes de possibilidades, ou seja, de transformações, parecem cada vez mais interditados diante de imaginações hiperobturadas.

Uma vez mais, Calzavara nos desloca para o presente através de suas obras atemporais. Não é por acaso que os mesmos elementos que trabalham por um mundo sem florestas, sem educação, também trabalhem por um mundo sem cultura. A possibilidade de criação de outros mundos possíveis na esfera da arte a torna um elemento de força insuspeitada no que toca a chance de imaginarmos um futuro que não reproduza esta “humanidade zumbi”, para usarmos a expressão de Ailton Krenak, forjada em meio a um grande mundo-cassino no qual tudo se torna mercadoria e no qual a nossa subjetividade se transforma na principal matéria-prima do capitalismo tardio. Semear uma imaginação obturada pelo excesso de estímulos, sensibilizar olhos anestesiados pela brutalidade cotidiana, deslocar subjetividades colonizadas, eis o que, em sua escala aparentemente diminuta, frente ao gigantismo dos dilemas contemporâneos, a arte ainda pode fazer, sim. E me parece ser essa a aposta, ou melhor, a escolha de Calzavara.

Não por acaso Além do horizonte batiza essa exposição justo agora – em fevereiro de 2022, no Brasil. Está incluído aí, no gesto corajoso que aproxima a arte contemporânea (sempre encastelada) da canção popular, o sinal de que algo se encontra em compasso de espera e expectativa. No limite, as paisagens nada dóceis de Ana Calzavara impelem a fazer de suas telas, gravuras e impressões os nossos genuínos “radares”, nos deixando entrever, por fim, uma singular cartografia para além do horizonte.

[1]    Ver TÜRCKE, Christoph. Hiperativos: abaixo a cultura do déficit de atenção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016; TÜRCKE, Christoph. Sociedade excitada: filosofia da sensação. Campinas: Editora da Unicamp, 2012.

Luisa Duarte

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